terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Eskolinha do Kassab

Kassab é um dos fenômenos mais intrigantes das últimas safras de políticos. Se não gastasse um dos maiores orçamentos do País, passaria despercebido. Consta que é bom na movimentação de bastidores. Antes de ser vice de Serra na Prefeitura de São Paulo, certamente o maior troféu "movimentação nos bastidores" dos últimos tempos, ninguém, exceto poucos parceiros, sabia dele.

Com a decisão de Serra de candidatar-se ao governo do Estado, assumiu a Prefeitura e, pouco depois, foi reeleito. Tornou-se conhecido do público basicamente por duas ações. A primeira foi a lei das placas, que tirou muita publicidade das ruas (mostrou belezas escondidas e revelou feiuras e fachadas desgastadas). A segunda foi a gritaria dirigida a um cidadão que reclamou durante a inauguração de um hospital e foi objeto de incrível destempero. Os gritos desvairados de "Fooora, vagabundo!" chamaram a atenção. Prepotência? Descontrole?

Tendo tudo para passar despercebido, tornou-se notório por uma característica peculiar. Parece falar de um lugar vazio, violando regras discursivas elementares. Disse "falar de um lugar vazio" e me ocorreu uma associação. Não estava em meus planos, mas (Freud explica) lembrei os kassabinhos, bonecos essenciais em sua campanha para a Prefeitura, que o elegeram. Cheios de vento, isto é, de nada. Autorretrato?

Para traduzir a personagem, exceto pelo único destempero, nada mais adequado que sua voz neutra, monocórdia, funcionando no automático, indiferente aos fatos, às fotos, à realidade, como na última semana.

No quesito, é um seguidor de Paulo Maluf (guardadas as proporções, sempre), que se tornou célebre também por violar regras pragmáticas. Se fizessem a Maluf, em entrevista ou debate eleitoral, alguma pergunta incômoda, baseada no noticiário, respondia falando de outra coisa. Desconhecia a pergunta, a mais grosseira das formas de lidar com o interlocutor.

Mas Maluf, ao contrário de Kassab, era, às vezes (quando ninguém o seria), de uma explicitude brutal: "Se tem vontade sexual, estupra, mas não mata!"

O Kassab que conhecemos parece ter sido sincero apenas na interpelação ao fabricante de placas. Suas declarações são as mais escorregadias que um político pode produzir. Sua frase mais histórica, se pode haver gradações nesse campo, é sobre a identidade do partido que fundou, cuja sigla foi antigamente o símbolo (o simulacro) da indecisão, o PSD: "Não é direita, nem esquerda, nem centro". Depois declarou que será de centro e independente. Nem mesmo a decisão de ser indeciso foi mantida!

Nos últimos dias, Kassab voltou à notoriedade. Não produziu declaração memorável, dessas que se debatem e são candidatas a verdades. Foram de novo declarações típicas dos que o povo chama de cara de pau. Sobre a implosão de um prédio que implodiu só em parte, disse e repetiu que a operação foi um sucesso, que o objetivo era liberar trânsito e não derrubar o velho moinho, que os que acham que a operação fracassou deveriam voltar para os bancos escolares... de engenharia.

Atribuiu nota 10 tanto à implosão quanto a seu mandato. Impávido, sempre imodesto, sua nota é sempre 10 (o eleitor parece discordar, mas ele não está nem aí). Assim como defende que uma implosão possa não derrubar toda a edificação, acha que um mandato não precisa cumprir todas as promessas. No negócio de dar notas, angariaria alunos: ganhariam 10 provas feitas pela metade ou com diversas respostas erradas na eskolinha do Professor Kassab.

A humanidade não é muito brilhante. Cria expectativas rotineiras, baseadas nas práticas: implosão é para derrubar todo o edifício, prédio ou estádio; promessa é para ser cumprida, mesmo a política. Kassab revoga essas leis, discípulo do cínico Maluf. Sem personalidade, no sentido corrente (a falta de personalidade não deixa de ser uma, como não fazer política é, paradoxalmente, uma forma de fazê-la), sem voz marcante, sem nenhuma frase "para cima" que mereça ser repetida, nem mesmo uma engraçada, como as do Tiririca, é espantoso que ocupe o espaço político que ocupa, especialmente na era da exposição midiática.

Maluf se notabilizou por fatos e frases, mas uma de suas máscaras mais notórias era a do cara de pau que desconsiderava a fala dos interlocutores: se lhe faziam perguntas sobre corrupção, falava das virtudes da mãe; se perguntavam sobre preços de obras, enumerava as que tinham sua marca. Era um exemplo chapado para teorias pragmáticas e para sua principal regra: se alguém não fala do tema proposto, é porque não quer ou não pode tratar dele; se não pode responder é porque a resposta condenaria. É assim em qualquer inquérito. Daí a regra jurídica segundo a qual ninguém é obrigado a se culpar. O júri não pode considerar, mas qualquer falante sabe o que isso significa: se o réu silencia, o silêncio o condena.

A "regra" de Maluf o denunciava. Kassab segue outro desvio: em vez de falar de outra coisa, declara, quebrando outra regra (elogio em boca própria é vitupério), que tudo o que faz é 10. Mesmo contra as evidências.

Os diversos sentidos de "cínico", exceto filosófico, caracterizam as falas de Kassab. O estilo é o homem?

SÍRIO POSSENTI É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA/INSTITUTO DE ESTUDOS DA, LINGUAGEM DA UNICAMP, AUTOR DE QUESTÕES, PARA ANALISTAS DE DISCURSO (PARÁBOLA)

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